Nesse agora, há de se saber morrer.
Encontrar a confiança para desapegar das ideias de quem somos. Sair da rigidez auto imposta por nomes, trabalhos, funções sociais, gênero, projetos, identidades. Há de se saber que não somos isso. Nada disso nos define.
Há de se saber morrer e encontrar nesse processo a compreensão que nossa forma de vida não é a única possível. Não pode ser. Vivemos de forma a esmagar a natureza. Em situação "normal", não há tempo de respiro nem espaço para reflexão. Não há tempo de contemplação e abraçar árvore é coisa de gente que não quer nada com a vida.
Escolho a morte dessa forma de vida, pois não quero seguir viva num mundo onde a forma de estar é produzir e consumir até atingir obesidade de ter, vício por fazer e inanição de ser.
Não quero seguir viva num mundo que aniquila o sagrado e oprime o diferente. Um mundo preso na pressa, que passa batido pela dor e pelo amor.
Quero um outro jeito, uma outra forma de vida. Um novo mundo. Sei que esse é um grande grande querer, que nasce de um coração que sente que podemos e merecemos.
Para isso, precisamos empreender a corajosa jornada de mergulhar no abismo do não saber o que vem além. Não me parece que seremos capazes de construir nada novo sem antes ter confiança de morrer.
A cada dia escuto sobre uma pessoa amada que fez a passagem.
Cada um de nós, nesse exato instante, está sendo visitado pela morte. Isso não é mórbido, é vívido! Estamos sendo convocados a lidar com a morte. Morte de pessoas, rotinas, formas de vida.
Desde sempre, há quem acredite não haver nada depois daquilo que se pode ver.
Além do horizonte, nada.
Além do céu, nada.
Além do planeta, nada.
Além das minhas ideias, do modo de vida atual, daquilo que acho que sou, do que conheço como vida, nada.
Em seu enxergar, não há além.
E se fosse possível enxergar além do que vejo? O que mudaria na minha confiança na Vida?
Será que se eu me permitir sentir o além, ampliarei as fendas por onde o Eu pode brotar?
Será que desinvestiria nas formas de vida que me ressoam tortas e pararia de abrir concessão?
Será que seguiria radicalmente para onde minha sabedoria interna me indica, sem me deixar ser ceifada pelo caminho?
A ideia de que tudo acaba depois da morte me parece ignorância de quem não consegue se abrir para enxergar além.
Morrer não é fim, é transformação.
Há além.
Meu olfato me diz que o depois pode ser até mais bonito.
A morte pode ser bela. Dolorosa, sim. E bela. Não estou romantizado as mortes nem achando graça no que está acontecendo.
É grave, é sério, há muita irresponsabilidade envolvida e muita consciência necessária.
Estou dizendo que estamos sendo convocados a lidar com a energia da morte. Façamos frente a isso. Honremos a dor.
Resistir à morte é ampliar a dor.
Quando ela se faz presente, escuta o que ela traz, não desperdiça sua visita. Abre a porta com respeito e escuta.
Não resiste.
A morte é inevitável. E vai nos visitar muitas vezes, então aprende o quanto antes a lidar com ela.
Pra quem sangra, ela chega a cada lua. Óvulo não fecundado, fechamento de ciclo, oportunidade de reinvenção. Desde que planto minha lua e oferto o sangue pra Terra, tenho apreciado as mortes mensais. Saio delas mais viva em mim. A mulher é abençoada pelos ciclos frequentes de vida-morte-vida. Sabemos renascer.
Aprender a morrer é caminho pra uma boa vida.
Deixar pra trás o que já não tem força de vida, reconhecer que o viver depois da morte tem outra proporção, mais verdadeira.
Essa é uma oportunidade de desacostumar-se com as normoses diárias.
Mergulhe no portal do vazio, tenha coragem de não ter pressa pra chegar ao outro lado. Confie na natureza cíclica de vida-morte-vida.
E sim, enlute. O luto é forma de ritualizar e das espaço para a tristeza que vem quando as coisas mudam. Sua realidade não será mais a mesma.
Deixa ir o que foi, honre o tempo que houve.
Tenha humildade para assumir seus desatinos.
Celebre a verdade do que permanece.
E alquimize aquilo que se transforma.
Sentir é forma poderosa de transformar. Deixe que as águas do seu corpo transmutem a dor em amor, a raiva em ação, a tristeza em confiança. Pode ir fundo, é seguro.
Nos encontramos, ainda mais inteiros, nos dois, do lado de lá! Morramos em vida para que o depois seja mais vivo.
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