Outro dia, recebi a seguinte mensagem:
Olá Carol linda,
Adoro o seu trabalho, é sempre uma grande inspiração, estive a ver os vídeos do seu blog e houve uma frase que me ficou no coração: nossa dor pode ser nossa forma de servir ao mundo.
Ao longo da minha vida, a minha maior dor foi o abandono, pelos pais, marido e o último: o suicídio meu filho. Neste momento, estou a recomeçar a minha vida, a ajuda ao próximo sempre fez parte do meu percurso de vida. A questão que gostaria que me esclarecesse é: como posso pôr a minha experiência de abandono ao serviço do próximo?
Depois de respondê-la, fiquei decantando esse e-mail por dias. Senti que era importante aprofundar esse tema, que me parece essencial.
O que significa “nossa dor pode ser nossa forma de servir ao mundo”?
Para alguns de nós, o serviço que temos para ofertar ao mundo surge de um incômodo vivido. Passamos por algo tão doloroso que sentimos no nosso coração o desejo de ofertar a outrxs um tipo de apoio que não tivemos, um apoio que teria facilitado muito a travessia do desafio. Conheço pessoas que viveram abusos, viveram por distúrbios alimentares, mortes de pessoas queridas, partos violentos e que passaram a apoiar pessoas que estejam passando por dores similares, seja através de atendimentos individuais, workshops, projetos, iniciativas ou empresas que servem a resolução dessas questões.
Vivenciar desafios como esses evoca questões profundas em nós e, ao termos a coragem, a responsabilidade e o comprometimento de atravessar a dor, vamos compreendendo com mais refinamento pontos ainda intocados da nossa psique, bem como que tipo de apoio é necessário para passar pelo desafio. E aí, depois de metabolizar o processo internamente, podemos apoiar outras pessoas.
Para efetivamente apoiar outra pessoa em seus desafios, você precisa estar com suas próprias feridas já cicatrizadas, ou avançadas no processo de cicatrização ou provavelmente vai projetar no outro o que você mesma ainda não resolveu dentro. Vai cair no erro de dar conselhos que não servem ao processo do outro, mas ao seu próprio. Por exemplo: se você resolveu ser coach de carreira para lidar com sua própria frustração com sua carreira, sem ter se aprofundado em sua própria história, padrões de comportamento, processos inconscientes e vícios, é bem provável que você comece a falar para os outros fazerem o que você sabe que deveria estar fazendo com sua própria vida.
Ou pode usar seu trabalho como uma forma de se vingar de quem parece ser seu “opressor”.
O que quero dizer é: se sua ferida não está cicatrizada, pode ser que você esteja ofertando um caminho para o outro como uma fuga inconsciente (e inconsistente) para não olhar pra si mesmx.
Como fazer isso? Terapia, amores, terapia. Recomendo terapias continuadas, para que possamos ir aprofundando mais e mais e mais e revelando novas camadas inconscientes.
Mas, Carol, é possível cicatrizar integralmente uma ferida tão grande como a morte de alguém querido antes de começar uma prática que oferta apoio a outras pessoas? Querer isso não seria isso uma outra fuga, de buscar a perfeição como desculpa para não agir e não servir?
Pois é, eu não acho que a gente se cure totalmente. Vejo a vida como um eterno processo de cura. A gente vai curando, no gerúndio. A cada passo, vamos processando mais uma volta na espiral, podendo ver e sentir uma oitava acima do que havíamos visto e sentido antes.
Outro dia eu chorei copiosamente a morte de alguém querido, depois de achar que o processo estava assentado em mim. O choro me revelou uma nova camada de dor que eu ainda não havia acessado. E isso me trouxe novos aprendizados. E talvez seja assim pra sempre.
Mas, sim, sinto que há um tempo mínimo de maturação necessário antes de ofertar ao outro algum apoio. Quando percebi, em 2010, que minha relação com trabalho não estava me fazendo feliz, escolhi tirar um ano me investigando para viver camadas profundas na minha frustração com o trabalho. (Sim, reconheço o privilégio nisso). Depois de voltar, tive diferentes trabalhos que me faziam mais feliz, empreendi uma empresa e realizei projetos que (na minha concepção de sucesso) foram bem-sucedidos - e outros tantos nem chegaram a nascer. Foram 5 anos de muito processo interno antes de ofertar algum apoio a pessoas. Olhei diferentes camadas, vieses, me senti realizada de diferentes maneiras. É como se eu tivesse me cutucado bastante nesse tema e me estudado profundamente. Criei internamente um repertório de possibilidades. E aí sim, posso apoiar o outro. Porque só posso levar o outro até onde eu mesma já fui.
Se você está pensando: “É isso! Vou então fazer mais aqueles quinze cursos, ler mais os doze livros e esperar 2022, quando o planeta tal entrar na casa tal pra começar", alto lá!
Meu convite para metabolizar seu processo com calma não significa que você precise esperar e que não possa ir se experimentando na prática de maneira responsável, sem se propôr a apoiar alguém de forma mais aprofundada... Como, por exemplo, movendo encontros de troca sobre o tema que vem te interessando com amigues, ou escrevendo semanalmente sobre suas descobertas.
Meu primeiro movimento “para fora” foi compartilhar num blog meus aprendizados do sabático. A prática de decantar meu próprio processo de desconstrução em palavras foi fundamental para eu aprimorar minha capacidade de ler e comunicar o que enxergo que está acontecendo com o processo do outro. É natural que a profundidade de nosso trabalho vá aumentando a medida em que vamos nos trabalhando. O trabalho amadurece a medida em que nós amadurecemos. Mas precisamos começar de algum ponto. Ele não será perfeito, nem ideal. É importante que seja responsável, que você siga comprometido com seu próprio processo de cura e investigação e naturalmente seu servir vai se aperfeiçoando com a prática.
Então qual o limiar entre aguardar o processo estar bem assentado dentro de você antes de ofertar ele ao mundo VERSUS não ofertar seu trabalho ao mundo por medo dele não estar "perfeito", ou assentado o suficiente? (Grata, Ju querida, por trazer esse questionamento!)
Pra mim, a questão principal aqui é: qual é sua motivação para colocar o bloco na rua agora ou para ensaiar com a banda mais um pouco (ou um muito)? Se você está neste momento de impasse, te convido a responder com auto-honestidade radical a algumas perguntas:
> A serviço de quê você ainda está aguardando? É uma desculpa para não correr o risco de realizar algo e não ser perfeito, maravilhoso, ovacionado por todos ao seu redor? Está com medo do julgamento do outro? Falta só mais um curso (além das dezenas que você já fez)? Seu padrão é da procrastinação ou da perfeição? Você já tem conversado com pessoas informalmente sobre isso e percebe que seus inputs trazem riqueza para os processos delas?
> A serviço de quê você já está querendo ofertar algo que é recente para você? Está fugindo de se aprofundar mais no seu processo? Com medo de que alguém faça antes que você? Quer provar que você é capaz? Seu padrão é da pressa e da ansiedade? Tem percebido que fala para o outro fazer aquilo que você mesmx ainda não fez?
Novamente, não há uma receita de bolo, um padrão do tipo “aguarde 13 luas antes de ofertar ao outro algo que você atravessou”. Há o que é processo evolutivo para cada um. Para alguns, é aguardar 4 luas. Para outros, 54 luas. O trabalho, não canso de repetir, é uma forma potente que temos de evoluir. Para além do que fazemos do lado de fora, é sobre o que se move dentro de nós enquanto ofertamos algo ao mundo. É de dentro para fora, é transbordamento.
Então, quando nós fazemos de nossa dor oferta de cura ao mundo, também é uma forma de a gente seguir curando o que há dentro de nós. Curando dentro para ir curando fora, curando fora para seguir curando dentro. Com coragem, responsabilidade e comprometimento, seguimos em nosso caminho evolutivo a cada novo passo.
Lembrei dessa história do Gandhi: "A mãe levou seu filho ao Mahatma Gandhi e implorou: "Por favor, Mahatma, peça ao meu filho para não comer muito açúcar, pois faz mal à saúde". Gandhi, depois de uma pausa, pediu: "Traga seu filho daqui há duas semanas". Duas semanas depois, ela voltou com o filho. Gandhi olhou bem fundo nos olhos do garoto e disse: “Não coma muito açúcar, pois faz mal à saúde". Agradecida - mas perplexa - a mulher perguntou: "Por que me pediu duas semanas? Podia ter dito a mesma coisa antes!" E Gandhi respondeu: "Há duas semanas, eu estava comendo açúcar. Não posso exigir dos outros aquilo que não pratico”."