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Quanta profundidade pode caber no excesso?

Tem mais de mês que não sento pra escrever algo pra postar nas mídias sociais. Foram 6 semanas sem criar conteúdo para qualquer canal que não fosse o e-mail.

Não foi promessa, acordo nem meta, como de costume.

Foi incapacidade mesmo. Sem aviso, a vida me arrastou pra dentro.


Estava tão exausta de palavra que elas desapareceram. No vazio, fui descobrindo como funciona minha mente sem a obrigatoriedade auto-imposta de ter algo pra dizer e fazer.


Que preguiça de partilha sem cessar.

Quanta profundidade pode caber no excesso?

Espaço vazio-cheio ocupado com vazio-esvaziado.


Nas primeiras semanas, me peguei querendo publicar o tricô que comecei a fazer, a receita da quiche que melhora a cada semana, as sobremesas que criei, os cavalos, vacas e borboletas que conheci, as tangerinas que colhi.


Pra quê mesmo?


Percebi que o impulso automático de postar qualquer coisa não estava vindo de um desejo genuíno de contribuir com a vida de quem lê, nem de uma necessidade de expressão artística, nem com qualquer outro princípio luminoso.


Queria mesmo era me ocupar.

Queria mesmo é ser vista. Se não sou vista pelo outro, não existo. Não bastava o tanto de canto dentro que estava enxergando.

Queria mesmo me provar fazendo pra fora. Tricotar, cozinhar e desfazer caminhos gastos não configuravam produtividade suficiente.


Mais, Carol, mais! Dá mais.

Uma fome insaciável e impreenchível.

Sintoma da doença de pra-fora.


Segurei, nas primeiras semanas, uns tantos impulsos doentios. Aos poucos, já não encontrei mais o desejo de comunicar.


Encontrei, no lugar, cheiro de pele saída do sol.

Canto de gralha-do-campo.

O sobe e desce na barriga dele.

As bochechas no calor do fogo.

A mesa desarrumada do almoço.


Fiquei nesses alis.

Sem fazer sentido de nada, distante do palavrear, dentro da sensação.

Logo eu, amiga das palavras desde nova, me vi afastada delas.

E, na não elocubração da vida, descobri o preenchimento de fazer pra dentro.


Estamos, enquanto sociedade monocultural, doentes de pra-fora. Para ser "útil" tem que fazer. E não basta fazer amor, verdade e arte. Tem que vender o que faz.

Meu fazer tem que ser comercializado pra eu me manter viva.

Até o fazer pra dentro virou commodity.

Nossos processos viram conteúdo, curso, e-book, 5 passos para o sucesso.


Sucesso pra mim, esses dias, tem sido sobre ter tempo pra colher e cozinhar meu alimento e nutrir os corpos da família.

Tem sido sobre cantar o tema da Pocahontas alto enquanto o marido toca no violão.

Sucesso tem sido poder respirar e sentir o ar fresco da manhã.

Ter amigas com quem partilhar confidências.

Brincar de mímica online com os sobrinhos numa 3a a noite.

Ler três livros ao mesmo tempo sem precisar tirar conclusões.


Se a mente toma espaço com "e a renda"?

Diariamente.

E, num ato de ativismo amoroso, respiro, escuto esse receio e escolho trilhar outra via.


Com os sapatos privilegiados que hoje visto, estou desinvestindo num sistema de vida que demanda que eu coloque meus talentos no mundo na doença do pra-fora, que me demanda produtividade e racionalidade constantes, desconexão da ciclicidade, pressa para atravessar a morte e o luto, produtificação de tudo que vive e conclusões rasas.

Sim, o sustento financeiro faz parte do processo de adultificação. É importante nos responsabilizarmos - também financeiramente - por nossas vidas. Não estou falando sobre entrar em guerra com o dinheiro.

Não é sobre guerra. Por dinheiro, já estamos em guerra com nossa própria natureza, com outros humanos e com os seres vivos.

É sobre amor.


Confio que há uma outra via, onde dôo o que tenho por amor à Vida. Nela dinheiro é consequência.

Há anos já não trabalho só por dinheiro. Achava que essa frase "dinheiro é consequência" já estava absorvida no meu sistema.

No silêncio, percebi a sutileza escondida no excesso de fazer: o medo de ficar sem ele seguia como impulso a ação desenfreada.


A lógica causadora da doença do pra-fora nos devora pela desatenção.

É preciso presença e coragem pra reconhecer a doença e buscar outro caminho.

Me parece que, ao produzir pelo medo de ficar sem dinheiro, estou colocando mais energia numa lógica anti-natural, alimentando aquilo que nos adoece coletivamente.


A borboleta não coloca condições pra fazer sua função. Ela poliniza pois é da sua natureza, faz parte de quem ela é e de sua parte no equilíbrio do sistema.

Assim como nós, potencialmente.


Não são todas as pessoas que podem investigar uma outra trilha, hoje, no país que vivo, no desenho financeiro no qual estamos inseridas. Eu não sei quanto fôlego eu mesma terei pra subir essa ladeira.

Mas, hoje, posso. Por meus privilégios, pelo trabalho feito até aqui, por minhas escolhas de vida.

Escolho desbravar essa mata não só por mim, pela minha saúde e da minha família.

Faço isso por nós, pela Vida, pela Terra e pelas próximas gerações.


Até quando eu puder, abrirei essa trilha. Não com facão, já andei muito com ele preso nas calças compridas. Vou de saia, pés descalços, respeitando o tempo de pausa, admirando a vista, ouvindo os sinais do caminho, agradecendo quem já caminhou por aqui antes, de mãos dadas com quem dá passos junto de mim.


Não encontrarei os 5 passos pra te levar nessa jornada. Mas, no mínimo, aprenderei mais sobre mim, sobre a Vida e sobre outras formas de viver.


Aos poucos, vou voltando a criar pra fora, na medida em que for fazendo sentido. Atenta aos tem-quês, as produtividades tóxicas, a de onde vem o desejo por partilha e ação.


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