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Você está ocupando seu lugar?

Aqui na varanda, de onde escrevo, acompanho diariamente as mudanças da Amoreira. É a árvore com a qual mais me relaciono. Assim que chegamos nessa casa, no meio do inverno do ano passado, ela estava descabelada, sem vigor nem frutos, resultado de uma poda mal feita e de pouco amor. 


Passamos 9 meses observando-a, entendendo qual seria um bom cuidado pra ela quando a época de podas chegasse. Em maio, era hora. Gui fez uma força tarefa no terreno todo pra abrir sol e renovar o ecossistema. Por muitas semanas, a cena era forte. Depois de anos sem nenhuma poda, o som da motosserra se apresentava diariamente e o solo ia acumulando troncos, galhos e folhas.


(Se você acha que podar é desmatar, recomendo que leia esse texto aqui, no qual falo da importância da poda pra agrofloresta, com paralelos pra nossas vidas. Aqui em casa não passa boiada nenhuma, pelo contrário. A poda vem para favorecer o todo.)


A Amoreira foi a árvore sobre a qual e com a qual mais conversamos, pra entender o que seria melhor pra ela e pro entorno.


E agora, 3 meses depois de sua poda, ela é um festival de amoras brancas, verdes e rosas. Toda manhã, abro a janela e fico uns minutos com ela, ansiosa por algum fruto arroxeado que se oferte pra nós. Ainda nada.


Os passarinhos, por sua vez, fazem a festa. Colocamos um comedouro ao lado dela, sempre com bananas, mamão e manga. Eles passam pelo comedouro, se refestelam e depois seguem pras amoras. Vão sempre na mais madura, a que está pronta pra digestão deles, mas não pra minha.


"Saiam da minha amoreira! Vocês vão acabar com os frutos antes que eu possa comê-los", eu penso.


Minha amoreira?

Acabar com os frutos?


Quanta pretensão achar que sou mais importante do que o jacu, a saíra ou o sabiá-laranjeira!


E quanta desconexão com a abundância da Natureza. São incontáveis amoras!


Já estava nessa relação com amoras e pássaros quando minha amiga Nat me contou que estava a observar o pessegueiro carregado do sítio onde moramos juntas e flagrou um pássaro bicando o único pêssego maduro no meio de dezenas.


Falamos sobre os sentidos de cada espécie. Como eles sabem com tanta precisão qual fruto está pronto pra eles?


Fiquei pensando na confiança necessária para saber a hora de ir.


No início da quarentena, lá em meados de março, fui com pressa, sem pensar, pra ação desenfreada. Até que Nat e Marina (valeu amigas! Cês são ouro em minha vida!) me revelaram a pressa que escondia dor. Desacelerei, chorei e senti. Por meses, fui incapaz de agir pra fora. Enquanto via ofertas e mais ofertas surgirem, estava ocupada me descriando. 


Tinha muita pressa, sim, mas tinha também integridade nos movimentos que acompanhava pelas redes sociais. Gente se reinventando, parindo serviços lindos, fazendo parcerias, se botando pra jogo. E eu silenciosa, observando, dentre muitos, o medo de ficar pra trás, ser esquecida, perder o bonde.


Perguntava diariamente pra Amoreira, ainda sem frutos: o que faço?


E ela, sintética: fica.


Respeitei seu comando, que era o mesmo do Manacá, do Guapuruvu e da Jabuticabeira.

Elas eram unânimes, refletindo o que minha própria natureza pedia e a mente desconfortava.


Fiquei na ação invisível, pra dentro.


Aos poucos, no mesmo ritmo em que as amoras iam surgindo, pequeninas, com mais pêlo do que corpo, eu ia criando pra fora também. 


As amoras e minha criação vêm amadurecendo juntas do meio do inverno pra cá.


Quando a coisa ganhou corpo por aqui, convoquei equipe e, como de prache, estabelecemos prazos. As definições foram pautadas na lua e na não pressa. 

Essa foi a pergunta-tônica: "se a gente lançar nessa lua teremos calma no processo? Nos permitiremos desfrutar e colher aprendizados?"


Tenho aprendido a respeitar o tempo das coisas e não ter medo da calma. Um dia as amoras ficarão maduras pra desfrute humano. Enquanto isso, é hora de outras espécies. Aprendi a admirar o tempo do outro. Tem tanta beleza na cadência com que cada coisa amadurece!

Me atino para não me comparar com o tempo alheio. Me atento para não fazer da vida uma competição por quem chega antes. Chega onde, mesmo? Me firmo na convicção de que estou sempre em movimento, atenta ao que a Vida me pede, e que, por isso, não preciso de pressa.


Se estivermos atentas, seremos capazes de ver o movimento diário da vida. Estagnação é diferente de pausa. Na Natureza, nada se estagna, pára por completo, se recusa a seguir. Quando parecia, lá no início da quarentena, que eu ia estagnar caso não me movesse, foi o contrário: movimento interno intenso e invisível, para quem não sabe enxergar.

Me relembro das incontáveis amoras quando tropeço na ideia de que vou ficar pra trás. Se eu assumo meu tamanho e ocupo meu espaço e você faz o mesmo, tem lugar pra todes! Assim como os passarinhos levam sementes de novas amoreiras por aí, seu trabalho, aquele que te cabe, engendra realidades que me beneficiam. Porque então competir, ter medo da falta de lugar. A vida não é uma dança das cadeiras. Contemplo a Natureza e reconheço: tem pra mim, pros passarinhos, pra todos. Se não quero ocupar um lugar que não é o meu, não tenho  o que temer.


Tenho experimentado a força de agir com inteireza, no espaço que me cabe, sem deixar minhas partes pra trás. Me reunir comigo mesma, meus tempos, ciclos, potências e desafios. Ir junto com o que é vivo. Não é uma força do esforço. É a força do que há de ser e não do que eu gostaria que fosse. Me ponho como canal do que pede pra nascer através de mim, centrada no meu tamanho real e no tempo possível. E a coisa vem.


Tem sido poderoso agir em comunhão, com ouvidos e coração abertos para receber uma forma de ir que esteja em conexão. 


Ação em conexão é agir em companhia com as forças da natureza. 


Cerimonizar cada ação, reconhecer sua sacralidade.


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